27 de julho, 2024

Outro dia maravilhoso na vida de Oscar Peterson

Jazz é um estilo eclético que permite tudo, abraça os demais gêneros musicais justamente por usar e abusar da improvisação – e talvez sejam esses detalhes que fazem muitas pessoas ainda não pegarem a coisa toda! Essa mistura sempre resultou em discos geniais e artistas únicos que conseguem transmitir através de seus instrumentos toda uma cadeia de sentimentos ímpares!

Mas tudo tem o seu preço. Graças ao estigma de ser uma música classista criada para um suposto seleto grupo de elite ou até mesmo somente aqueles que possuam uma formação cultural acima da média, o jazz passou a ser um estilo incompreendido e muito pouco requisitado. Mas isso tudo está longe de ser uma verdade, até porque o jazz nasceu, assim como o blues, no seio da cultura afro-americana por meio de artistas humildes por volta de 1900 em New Orleans, quando houve uma grande explosão musical misturando diversos estilos.

As work songs, o já citado blues e o ragtime se misturaram naturalmente aos ritmos complexos da música trazida pelos escravos africanos para a América do Norte e às harmonias trazidas pelos imigrantes europeus ao mundo novo – tudo isso mediante conjuntos que amavam improvisar melodias e solar de maneira livre para alçar novos voos musicais.

Em outras palavras: deixar de buscar o jazz por não se considerar apto para apreciar o estilo musical nada mais é do que abrir mão de grandes canções por puro e simples preconceito – e isso é refletido nas novas gerações, que encontram nos pobres ritmos atuais com estilos duvidosos, conteúdos fracos e melodias limitadas, sem nenhuma profundidade, um meio mais fácil de escutar “música”.

Por este motivo é que um trabalho maravilhoso como este Another Day de Oscar Peterson acaba escondido para as novas gerações. Quem descobre um disco como este, por exemplo, arrisca ficar taxado como esnobe, mas na verdade está ganhando uma passagem sem volta de felicidade musical em um oceano banhado por artistas sem igual que o jazz pode proporcionar. Chamar de música própria de elite um estilo que nasceu de mescla sonora feita de pessoas talentosas de origem humilde? Conta outra história, cara! O pianista canadense Oscar Peterson foi um gigante (em todos os sentidos) do jazz durante seis décadas, gravando inúmeros discos e se apresentando ao lado de músicos consagrados.

A música estava no seu DNA, uma vez que ele vinha de uma família que respirava música, fazendo com que o jovem Oscar estivesse envolvido com as notas musicais desde sempre. Seu pai fazia questão que seus cinco filhos aprendessem pelo menos um instrumento musical e como o jazz pegou Oscar de jeito aos cinco anos, ele começou a tirar as suas primeiras notas de um trompete. Com certeza é da natureza deste instrumento que surgiu a habilidade de tocar notas de maneira rápida que Peterson. Ainda pequeno, o jovem aprendiz foi forçado a abandonar o instrumento logo após um ataque de tuberculose – e é aí que nasce a lenda do piano!

Com o passar dos anos, Peterson foi acumulando discos brilhantes que entraram para o folclore do jazz como Night Train, de 1963. Na década de setenta (que é o foco desta obra) o pianista já chega com um disco altamente recomendado para qualquer pessoa que esteja buscando uma referência dentro do estilo. Mesclando momentos mais acessíveis do jazz tradicional com lances mais livres, o disco é um desfile de habilidade musical nos dedos deste gigante músico canadense que está muito bem acompanhado de George Mraz no baixo e o fantástico Ray Price dando uma aula de bateria.

O disco abre com Blues for Martha, composta pelo próprio Peterson, que resolveu começar tudo no maior astral com o nosso pianista arregaçando uma linha no piano cadenciada e swingada. Um boogie com base no blues cuja marcante linha de piano possui frases e mais frases que não se esgotam em nenhum momento sequer. Peterson usa e abusa de seus comparsas Mraz e Price que dão o molho que a canção precisa. Sem dúvida uma das melhores aberturas de discos de todos os tempos.

Greensleeves é aquela mesma música de origem medieval do folclore inglês muito conhecida por seguidores de alguns guitarristas de rock como Ritchie Blackmore, do Deep Purple. O arranjo que Peterson cria é delicado e cheio de nuances, principalmente na bateria que acompanha até mesmo nos momentos mais silenciosos. Peterson faz das teclas de seu piano a extensão de seus dedos em fugas precisas sem desconfigurar a melodia, fechando com uma delicada progressão. Vamos resumir da seguinte maneira: se esta não for a melhor versão de Greensleeves que eu já ouvi até hoje, está bem perto de ser.

I’m Old Fashioned, uma composição do premiadíssimo compositor americano de música popular Jerome Kern (com invejáveis 700 composições no currículo) e de Johnny Mercer, outro compositor que também era letrista de mão cheia, traz de volta o clima para cima da abertura do disco em uma grande música lotada de improvisações e com inúmeras paradas estratégicas – além de uma cozinha musical de dar inveja em qualquer trio de jazz. A velocidade nos dedos, uma das principais características de Peterson, emerge novamente até que o pianista abre espaço para George Mraz mostrar o seu talento com um solo pontual que serve de ponte para a música voltar à sua melodia inicial. Daí pra frente o que se ouve é a banda se divertindo – e sim, dá para sentir que eles amavam o que faziam sem sombra de dúvida.

Para fechar as cortinas do lado A, Oscar nos apresenta All the Things You Are, com pouco mais de seis minutos em que o trio mostra que a Bossa Nova estava dentro do DNA de suas influências. A batida é extremamente calcada no nosso jazz/samba e Peterson nos transporta para uma tarde em Itapoã ou uma manhã em Ipanema. A canção vai ganhando intensidade e corpo até Peterson disparar seus dedos em um festival de escalas ao mesmo tempo em que bateria e baixo mantém o controle da música. Estamos ouvindo uma canção marcante que mostra toda a paixão de Oscar pelos sons da nossa terrinha – e se buscar no Youtube você vai encontrar diversas músicas brasileiras interpretadas pelo canadense. Sensacional é pouco!
Virando o disco, é hora de Ray Price brilhar com as baquetas em Too Close for Comfort! Se o ouvinte do disco ainda não começou a cair de amores pelo jazz ouvindo este trabalho até agora, daqui não passa! A composição é frenética e nenhum instrumento para um segundo sequer. Price executa seus inspirados solos mostrando toda técnica e precisão que só um bom baterista de jazz é capaz de emanar, e vamos combinar que é impossível não gostar de um solo de bateria executado por um jazzista. Peterson sabia exatamente quem estava ao seu lado e quando ele libera essas feras todos ganham – o disco, os ouvintes e o próprio Peterson. Um assombro em forma de música!
The Jams Are Coming, composição de Johnny Griffin, segue os moldes jazzísticos tradicionais. A canção começa e segue cadenciada com uma sucessão de acordes relaxantes e com arpejos refinados de Peterson com sua técnica inconfundível, misturando suavidade e agilidade. Uma aula de piano gratuita. Mais uma vez o entrosamento entre todos os instrumentos explode pelos alto-falantes e o resultado é uma música executada de maneira mais que harmoniosa. Siga as nuances de Peterson até o final – a cada audição, uma nova descoberta!
A próxima faixa é a lindíssima balada It Never Entered My Mind que durante seis minutos traz uma sonoridade erudita ímpar! Peterson faz um concerto praticamente sozinho em toda a delicada música, com direito às escapadas de dedos por praticamente todas as teclas do piano. A banda entra suavemente na metade da música de maneira silenciosa, quase imperceptível, para não atrapalhar o mestre no seu momento mais sublime em todo o disco. It Never Entered My Mind é, sem dúvida, o melhor resumo da genialidade e da sensibilidade do músico canadense. Uma música cheia de classe, perfeita para momentos românticos.
E para encerrar esta obra, chegamos na última faixa chamada Carolina Shout! E lá vamos nós novamente com o blues agitado dentro do formato milagroso do jazz nesta que é a mais animada gravação de Another Day! Escalas que sobem e descem no baixo são acompanhadas por baquetas cirúrgicas que formam uma camada sonora para que Peterson se despeça de todos com o seu melhor desfile de notas de um pólo ao outro do piano! Bem curtinha, mas completa!
Um disco cheio de boogie e de baladas extremamente delicadas, improvisos em cima de temas absurdamente complexos e virtuosos e o famoso jazz livre e desimpedido que só os grandes conseguiam fazer. Este é Another Day! Aroldo Antonio Glomb Junior é jornalista e Athleticano.

Sobre o colunista

Aroldo Glomb

Jornalista formado. Podcaster. Conhecido no meio da música como “Dr. Rock”.

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